Cômodo em rotação pulsante
O sufocamento passou?
E o sorriso familiar puxou-me com um imenso solavanco e me chacoalhou para todos os lados possíveis – me balanço até hoje. Eu, um cômodo cheio de entulho empilhado. Nos anos que tive de prática, consegui arrumar um cantinho onde existir era possível em extremo incessante desconforto. Uma lâmpada se acendeu.
O cômodo tremeu como num terremoto e tudo mudou de lugar com todas as coisas espalhadas em lugares diferentes. Em espanto, pude ver um pequeno brilho num canto distante. Era a minha luz. Trouxe-a rapidamente para o centro do cômodo onde eu pudesse vê-la melhor, e lá a cultivei. Como uma mosca embriagada por uma lâmpada, me deixei hipnotizar. A luz ia crescendo e crescendo.
O quarto novamente se iluminava e todo o entulho se sentiu quentinho. Consegui ver sujeira onde eu nem sequer sabia que podia existir, tudo estava tão claro agora! Através da minha pequenina luz, pude ver ao apertar meus olhos, que havia um outro lado. Lá existia um sorriso. O sorriso que causou todo o terremoto neste cômodo. E ao me dizer oi, soou como um girassol. Eu, de lua, me apaixonei.
Naturalmente... tudo começou a achar um lugar. O cômodo até abriu uma janela pela primeira vez, convidando brisas fresquinhas e raios de sol aconchegantes para invadir o local. Educadamente, a brisa acariciou meus cabelos e o sol beijou meus olhos, fazendo-os chorar. O sufocamento passou?
Permiti-me acreditar que não existiria mais dores ali. Não dor da forma que eu conhecia, pelo menos. Não mais as dores em versos dúbios em intenções ofuscadas por segundas intenções escancaradas, tão frequentes antes. Não dores fugazes, cibernéticas, sem importância. Caso isso ocorresse, não me machucaria mais – ousei pensar. Me ouvi pensar, e pela primeira vez! Eu existia dentro desse cômodo! Ele não era eu. Nunca havia me visto, pois achava que eu era entulho também. Logo quando me levantei, o entulho me olhou e me entendeu como Rei do Reino do Entulho que agora tem uma janela com brisa e raio de sol.
A luz interna cresceu e vibrou criando uma movimentação intensa que jogava o cômodo para lá e para cá. O teto de madeira maciça rangia e muita poeira saia de lá. O teto teve uma leve rachadura, e o céu era chuva, e ela entrou. Raio de sol, brisa e chuva. Eu e o entulho. A luz agora menor e tímida. A voz do outro lado soltava gargalhadas, mas não eram para mim. Posava para fotos, mas não queria que a admiração viesse de mim. Uma rachadura se fez e uma fresta idêntica à do teto se abriu em meu peito e uma cachoeira começou a sair dela, inundando o cômodo. Um raciocínio começou a se criar.
A chuva trazia aos meus olhos lágrimas tão grandes que se misturava com o dilúvio em meu peito, cobrindo o entulho de água rapidamente. O que é essa dor? Não existia entulho que reconhecesse aquela sensação atordoante. Um choque passou pelo cômodo. Um trovão vindo da chuva, que secou meus olhos por um breve momento: o cômodo está se corrompendo. As paredes abriam frestas tão grandes que entulho caia para fora, com água e sujeira. O céu girava rapidamente acima de mim. A brisa fresca tornou-se um furacão violento – era entulho para todo lado. O sol deixou de beijar meus olhos. A luz do cômodo diminuiu – uma mera faísca.
Lamúrias, lamúrias, lamúrias! Como pude corromper-me à dor desconhecida?
Uma doce voz respondeu dizendo que tudo que ali havia era entulho de uma mesma origem. Procurei ao redor. A voz não vinha do céu, não vinha do furacão e nem dos trovões. A voz vinha dos meus lábios. Era a dor do amor. A primeira das lembranças daqui.
Pulsando, veio a rotação. Tudo rodava tão rapidamente em efeito centrífuga que meus pensamentos escaparam de mim. Tudo se apagou.
Quando meus olhos encontraram a luz novamente, ela estava pairando acima da minha testa, e eu estava em um lindo campo verde com cobertores de violetas. E foi quando meus pensamentos voltaram e pediram para entrar e eu os abracei. Eles voltaram com uma notícia.
O sufocamento passou?
Ainda não. Mas num campo aberto tem ar de sobra.
art. chet baker portrait by tony huynh
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